sábado, 7 de janeiro de 2017

Introdução ao λόγος e ao ἄπειρον de Heráclito

Ἐν ἀρχῇ ἦν  λόγος, καὶ  λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, 
καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος,
No princípio era o Logos, o Logos estava perante Deus
e Deus era o Logos.

       
Heráclito levantou a doutrina do logos, retirando o conceito se uma vala comum e dando-lhe o revestimento filosófico. Séculos mais tarde, o evangelista João deu-lhe um sentido cristão, e isto nos chama a atenção, pois o Logos deixa de ser dos gregos para ser evangélico. Havia outras fórmulas para serem aplicadas, mas a terminologia heracliana foi eleita e os cristãos viram o Evangelho de Deus dividir fronteira com a filosofia dos homens. A provocação joanina é flagrante! Dois termos caros aos gregos estão conjugados no primeiro versículo: arché e logos. O princípio está ligado a logos, palavra, discurso e razão. Como entender João sem Heráclito?

Visto que os gregos não acreditavam na possibilidade de se conhecer Deus porque ele não é corpo, porque não se mostra ou é tangível... o nascimento de Jesus é narrado como uma ruptura dessa condição. Duas descrições de São João, uma contida no preâmbulo do Evangelho e, outra, no da primeira epístola, são muito expressivas nesse sentido. Elas foram elaboradas com termos filosóficos, e sua linguagem remonta a Heráclito. O curioso é que foi na mesma cidade de Heráclito, em Éfeso, que São João escreveu tanto o Evangelho quanto as epístolas. (SPINELLI, 2002)

       
Desde Heráclito o logos se debatia com a ideia do ser e do não ser. O ser como entidade que é enquanto é e que mergulha no rio do não ser, fluindo em correntezas caudalosas. Ao sair do rio, o ser está transformado e não pode voltar a ser que era antes. Este raciocínio heracliano é chamado de “obscuro”, pois encerra uma polêmica existencial, afirmado que uma coisa é e não é ao mesmo tempo. De onde surge esta ideia do panta rei, de que tudo flui - tudo muda e se transforma? Vem de ἄπειρον (ápeiron). Que é isto? É a ideia do infinito, indefinido, ilimitado.

APEIRON (gr. ἄπειρον). O infinito ou o indeterminado: segundo Anaximandro de Mileto, o princípio e o elemento primordial das coisas. Não é uma mistura dos vários elementos corpóreos, em que estes estejam compreendidos cada um com as suas qualidades determinadas, mas é matéria em que os elementos ainda não estão distintos e que, por isso, além de infinita, é também indefinida e indeterminada. Essa determinação dupla de infinitude no sentido de inexauribilidade e de indeterminação permaneceu por muito tempo ligado ao conceito de infinito. (ABBAGNANO, 2007)

       
A fonte do rio heracliano (que faz tudo fluir) é o ápeíron, o infinito. De lá vem o não ser, das coisas que não podem ser pronunciadas, pensadas, descritas ou localizadas. E uma vez emergindo infinitamente do não ser, pergunta-se: para onde elas vão? Vão para o infinito! É com esta lógica que Heráclito constrói o panta rei, com tudo fluindo constantemente e não podendo ser afirmada a permanência do ser. 

Este ápeiron foi representado em um escudo descrito por Homero na Ilíada, no final do Livro XVIII. A descrição feita por Homero do “escudo enorme e poderoso” que Hefesto molda para Aquiles é [...] uma imagem do mundo, uma representação moral e simbólica do universo grego [...] um círculo da Terra, circunscrita aos limites do “poderoso rio Oceano”, que define a fronteira (peirata) de um mundo potencialmente ilimitado (ápeiron). (BROTTON, 2014)


       
A problemática de se estabelecer o infinito como fonte de todas as coisas está em sua inexatidão cósmica. Ele não pode ser localizado dentro das estruturas do tempo e do espaço. Ele é imensurável e intemporal, sem começo nem fim. O ápeiron está para além das condições lógicas do pensamento e até as mentes mais adestradas da fé cristã tem dificuldade em conciliar o atributo da infinitude a Deus. Ele não pode ser categorizado como “infinito”, pois o infinito não se presta a ser conhecido. Se Deus é infinito, significa que Ele não conhece a si mesmo. 

Obras Citadas

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BROTTON, J. Uma História do Mundo em Doze Mapas. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
SPINELLI, M. Helenização e Recriação de Sentidos. A filosofia na época da expansão do Cristianismo - Séculos II, III e IV. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.

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