terça-feira, 15 de novembro de 2016

Introdução à Filosofia Cristã - O logos de Heráclito e o Logos de João

Qual é a diferença entre religiosidade e espiritualidade? Este é um dos grandes dilemas da cristandade. Qual é a fronteira entre as duas? Qual é a intersecção entre ambas? Estão amalgamadas e grudadas uma na outra, ou podem ser separadas? Para dissertarmos sobre isto iremos nos remontar ao final do século I, no tempo em que foi escrito o Evangelho de Jesus segundo João, o qual se apropriou de muitos conceitos filosóficos, começando com a ideia do logos: “No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus” (João 1:1).

Sabemos que o Novo Testamento foi escrito em grego, a mesma língua em que a filosofia surgiu na antiguidade questionando tudo: a natureza, os deuses, a sociedade, vida, morte, e até mesmo sobre “o que é filosofar”. Dentre os filósofos gregos surgiram os chamados “pré-socráticos”, homens que iniciaram o arrazoamento sobre uma nova aplicação da mitologia à realidade humana. Qual seria o sentido dos mitos?

Um desses pensadores chamava-se Heráclito, o obscuro. O homem que falava em frases curtas e não se preocupava em ser entendido por todos. Discursava entre os dentes, em voz baixa e átona. Para entendê-lo, era necessário adestrar o ouvido e prestar muita atenção a seus apólogos, além de manter a paciência e guardar tudo na memória. Era apelidado de “o obscuro” e passava a impressão de estar possuído por um demônio, quando, na verdade, estava apenas a falar por adágios, enigmas e sem preocupações didáticas. Pretendia alcançar, tão somente, ouvintes atenciosos que entendessem a questão filosófica tal qual ele entendia.

Em seu tempo, o conceito de logos era muito popular. A cultura grega, assim como a religião, a política e toda a sociedade era bem loquaz, extremamente falante, daí, imprimir ao “logos” uma importância capital a seu uso. Mas, é em Heráclito que o conceito sai do uso comum para ganhar aprofundamento filosófico. Ele acercou-se do logos, e abstraiu uma ideia paradoxal:  πάντα ῥεῖ (panta rei). Tudo flui! Nada permanece! Nada é do jeito que é para sempre, por que o “para sempre” não existe! Quem afirma o “para sempre” nega a essência do κόσμος (cosmo / mundo), do universo e da vida. Tudo flui - panta rei.

Heráclito afirma que as coisas acontecem em dois momentos obscuros: no futuro (o devir), e no passado (o não-ser). Vem do futuro, se realiza no presente e vai para o passado. Há um paradoxo aqui! Os ocidentais contam o tempo de forma linear e ordenada, da esquerda para a direita: 1, 2, 3, 4, 5... Mas Heráclito inverte esta lógica, pois o rio do tempo está correndo em outro sentido. Seu mais famoso aforismo emprega esta metáfora dizendo que “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Por quê?  Por causa do fenômeno ontológico de quem se banha: É um ser ao entrar e outro ao sair! Tudo flui – PANTA REI! Ainda que se entre muitas vezes no mesmo lugar do rio, já não é o mesmo ser que desce às correntezas. É outra pessoa e são outras águas.

De onde vieram as águas em que nos banhamos? Do passado, como propõe nosso modelo de calendário? Não! As águas vieram do “devir”, ou seja, do futuro. É uma contagem constantemente regressiva: 5, 4, 3, 2, 1. Ao chegar no 1, entramos no rio e as correntezas do devir nos banham e vão para o passado, o não-ser (-1,-2, -3, -4, -5). Percebeu o obscurantismo deste pensamento? 

A lógica invertida de Heráclito permite ao ser a participação ativa nos dois momentos da (futuro e passado). Já o calendário ocidental tira do ser a oportunidade de alterar o futuro, uma vez que este sempre continua à frente do homem, e nunca se relaciona com a existência no tempo.

O arquétipo do pensamento heracliano tem raízes na ideia de reminiscência defendida na mitologia grega. Tudo nesta vida seria uma espécie de lembrança, como se estivéssemos re-vendo a história tecida pelo destino nas mãos das deusas primordiais (chamadas de moiras) antes de chegarmos ao mundo. Nesse esquema, nós seríamos seres aprisionados no tempo, guiados cegamente a um fim trágico (o não-ser). Para nos livrarmos do destino, precisamos tomar o olho das moiras e vermos por nós mesmos o futuro como possibilidade de mudança, não como fatalidade imutável.

O conceito heracliano do devir chega ao Evangelho de João, embora transformado pela metodologia do Novo Testamento. O devir joanino é o Logos, aquele que era antes do kosmos. O grande apóstolo não era um desavisado! Ele exerceu seu ministério dentro da comunidade cristã grega na Ásia Menor, em Éfeso, cidade de Heráclito, e propositalmente abriu seu livro com uma frase enigmática:

Ἐν ἀρχῇ ἦν  λόγος, καὶ  λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος,

Heráclito dizia aos efésios “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio” por que “tudo flui”. Tudo vem do devir, entra no kosmos e vai para o não-ser, semelhante ao dia de amanhã, que está chegando e ninguém barra sua marcha. O futuro está vindo como um rio! No momento que nos encontra, nos banha e transforma o presente, prosseguindo depois seu caminho para o passado, nunca mais voltando. Tudo tem seu caminho neste contra-fluxo do futuro idealizado ao passado inalterável.

Ainda existem outras matrizes na filosofia de Heráclito, oriundas das mitologias de Hesíodo, que são tratadas em termos de ser e não-ser. O ser é aquilo que é enquanto é, e o não-ser é aquilo que não é enquanto não é.

O não-ser possui dois estados:

1 – de possibilidade, que existe em ideia;
2 – de realização, que existe na memória.

A diferença entre ambos está em sua natureza. Enquanto ideia, o não-ser pode sofrer todas as variações do fluxo contínuo pois vem do “futuro” em estado livre, aberto, inédito. Mas ao esbarrar com o não-ser do “passado”, gera o ser e choca-se com a necessidade de realizar transformações ao longo de sua trajetória. Chamamos este encontro das águas de “presente”, aquele instante em que o fluxo se paralisa por um instante, transforma-se em ser e se move para o passado, para a memória, o não-ser imutável. Dessa forma, a eternidade se apresenta como algo “no passado”, imutável, inalterável, perfeita, e que não pode ser vivida novamente, está morta, ou, adormecida na memória.

Nós, seres humanos, estamos entre o não-ser (ideia, possibilidade, futuro, devir) e o não-ser (memória, eternidade e perfeição). Precisamos sair do estado de imperfeição para o estado perfeito. Para os gregos antigos, perfeição é aquilo que não pode ser mudado, nem qualificado, nem corrompido, pois está completo e pleno. Não pode sofrer alterações.

Com estas bases conceituais, Heráclito prepara o caminho para seu “logos”. O “panta rei” vem como um rio em sentido inverso, com aberturas para mudanças, pois o não-ser ideal ainda não é um não-ser memorial. É como um relacionamento imprevisível, mas que deixa suas marcas depois de relacionar-se. O ser tem a tendência de manter-se inalterado, mas o fluxo contínuo não lhe permite permanecer no mesmo estado de sempre. O que se acrescenta ao ser é justamente o influxo do não ser, transformador de tudo o que esteja ao seu alcance. E isto inclui a religiosidade.

Há uma tendência de nos mantermos dentro das inalterações da religião, por um acomodamento estanque, existencial, em busca de repouso. Mas o fluxo contínuo perturba nossa comodidade e a religiosidade se mostra incapaz de satisfazer as aspirações do espírito. Os dogmas imexíveis que nos são apresentados tendem a tolher nossas habilidades espirituais, não nos permitindo ir “além” do dogma. Como o espírito humano tem a característica de inquirir sobre a dinâmica de todas as coisas, chega um momento em que esbarramos no dogma e ao investigarmos a origem deste conceito, somos levados ao termo “dokein”, de onde vem “doxa”, ou seja, um ponto de vista, uma opinião, tomada como expressão da máxima da verdade. Dentro da filosofia de Heráclito os dogmas também estão sujeitos ao fluxo contínuo do não-ser.

A Filosofia Cristã aceita a provocação de Heráclito, e se propõe a trabalhar a questão da alteridade entre a religiosidade e a espiritualidade, entre dogma e pensamento, entendendo que há uma transcendência do espírito sobre a religião, forçando o cristão a amadurecer intelectualmente, libertando-o de seu enclausuramento dogmático. O problema maior é que a estrutura religiosa se mostra onipresente ao cristão e para onde se virar irá esbarrar com a força dogmática, com o poder do sistema, com a esmagadora massa de religiosos. O filósofo cristão entra no rio de Heráclito e se vê tomado pelas forças das correntezas. Vê-se transformado em um cristão fluindo com o rio, e não estatizado com a institucionalidade do dogma, ou dogmatização institucional. Passa a olhar o devir como aberto às mudanças, diferentemente daquilo que afirma o enigma da eternidade.

A Filosofia Cristã não é para os tímidos, os timoratos, os amorfos e dogmáticos da religiosidade. Desde que João fez a apropriação do conceito heracliano e afirmou que “no princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus e Logos era Deus”, o sono dogmático (conforme Barth), se tornou em pesadelo! Ao trazer Heráclito, o obscuro, para as fronteiras com o Evangelho, João chamou toda a cristandade a filosofar, construindo uma ponte entre o pensamento e a fé cristã. 

O panta rei saiu de Éfeso, seiscentos anos antes de Cristo e passou por João, como um rio caudaloso e com fortes correntezas. Veio para mudar e transformar a teologia dogmática em filosofia cristã. João poderia ter evitado esta aproximação entre Logos e Cristo, mas não o fez. Os demais evangelistas evitaram, começando o evangelho com seus arquétipos judaicos (genealogias e citações de profetas). Mas João foi inspirado a identificar o logos com o Cristo.

Isto nos dá mostras de que a sabedoria cristã se apresenta em graus e níveis, que vão desde as doutrinas rudimentares às mais altas categorias do pensamento humano. O evangelho não foge à luta das ideias, não engessa o intelecto, não amedronta a investigação teológica. Ela emancipa o cristão de sua ortodoxia para a heterodoxia, justamente por causa da amplitude que o Evangelho carrega em si. É impraticável que um cristão seja ortodoxo, conforme rezam os dogmas. Uma vez no mundo do pensamento, as amarras soltam-se e o espírito voa alto, como lhe é característico por natureza.  A heterodoxia possibilita a abertura para grandes compreensões acerca de Jesus Cristo e seu Evangelho, jamais comprimindo o espírito a um amontoado de fórmulas prontas.

Heráclito mexeu com todo o balanceamento da filosofia a propor o “devir” como agente implacável da vida e do mundo. O não-ser vem como uma tsunami, arrastado tudo a seu alcance. Ao encontrar seu limite, o não-ser transforma tudo e flui ao passado, deixando sua memorável obra tsunâmica! E não há como escapar à sua influência, já que ele age por si mesmo, sem perguntar nada a ninguém. A vida segue o fluxo do rio heracliano, tirando a criança do útero materno e jogando-a no mundo adulto, por força da existência. E a base da filosofia é a vida!  Mas também é a morte, pois a doutrina do logos compreende o não-ser como uma variável da morte, ou, a morte é um estado dos estados do não-ser.

Que nos animemos ao fluxo contínuo da Filosofia Cristã, ousando como João a identificar Cristo com o Logos e percebermos quantas nuances estão presentes no santo Evangelho escrito de forma singular, provocativa, dialógica e com altos graus de sabedoria. A entendermos como os arquétipos do Logos estão vivos na filosofia joanina, apresentada a nós de forma evangélica e tomadas, letra a letra, palavra a palavra, frase a frase, fato a fato, símbolo a símbolo, como expressão da Palavra de Deus.

Paz seja contigo, amigo leitor.